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O cada vez mais complexo trabalho de produzir repertório para coros confessionais

Angelo Dias (EMAC - UFG)

1 de jul. de 2023

A arte de produzir e executar música para o culto religioso se tornou, há algumas décadas, um trabalho complexo e, por vezes, desafiador.

Atividade que, durante milênios, foi organizada e seguiu parâmetros distintos, tanto estilística quanto liturgicamente, a arte de produzir e executar música para o culto religioso se tornou, há algumas décadas, um trabalho complexo e, por vezes, desafiador. Isso se deve às novas orientações que têm surgido nos meios religiosos, afetando a aplicabilidade do termo “sacra” à música produzida com fins confessionais, bem como ressignificando os meios artísticos pelos quais essa música é levada a efeito no culto.


Em outras palavras, tudo mudou em praticamente todos os segmentos religiosos. No universo católico, que liderou a arte da música sacra durante grande parte da história cristã, o Concílio Vaticano II, na década de 1960, teve como lema o aggiornamento (atualização, em italiano), ou seja, o esforço de modernizar a liturgia, a música, a linguagem, enfim, o diálogo da Igreja Católica com o mundo da era espacial. O abandono do latim milenar, o culto em vernáculo, as celebrações com características de cada povo, inclusive musicais, transformaram completamente até as paróquias mais remotas do globo.


No meio protestante, as igrejas históricas, mais antigas e com práticas sedimentadas desde os diversos ramos da Reforma no século XVI (na Alemanha, Inglaterra, Suíça), passaram a dividir espaço com as novas denominações de origem norte-americana do início do século XX, como a Assembleia de Deus. As orientações dos novos cultos, com forte influência pentecostal, tornaram a música cada vez mais distante daquela herdada dos hinários das igrejas históricas, em favor de uma prática avivada e participativa por parte da congregação.


Aportando em terras brasileiras, vindo da França, no último quartel do século XIX, o Espiritismo se tornaria uma doutrina filosófico-religiosa bastante difundida. Porém, ao contrário do que ocorreu em outras vertentes religiosas, a música não adentrou imediatamente a vivência espírita, tornando-se estabelecida a partir da segunda metade do século XX. Hoje, é parte das atividades regulares das Casas Espíritas, especialmente com o movimento coral, que se estabeleceu como uma das principais práticas musicais espíritas.


Assim, na atualidade brasileira, as três maiores manifestações de música de culto com as quais trabalham os regentes corais são a católica, a evangélica (dita protestante) e a espírita. A despeito do passado distinto que as trouxe até o presente por vias diversas, as três compartilham, hoje, muitos pontos em comum, inclusive suas dificuldades quotidianas.


A prática coral, fundamento da música histórica católica e protestante, perdeu terreno na modernidade para uma música congregacional de cunho popularizado, na católica, com forte influência dos ritmos populares brasileiros; na evangélica, com a tentativa nem sempre bem-sucedida de impor como “nossa” uma linguagem musical importada da estética gospel dos Estados Unidos. Num caminho tangencial, a música espírita solista foi sendo escrita com um pezinho no repertório popular de baladas e canções, enquanto os coros tomavam emprestadas dos hinários católicos e evangélicos as peças mais tradicionais, cuja letra, ligeiramente retocada, quando necessário, pudesse ser empregada como repertório para o culto nas casas espíritas.


Em suma, nenhum segmento está hoje totalmente satisfeito; todos estão em busca de um caminho definitivo. Católicos sonham em trazer de volta o coro para abrilhantar a missa, dividindo com a congregação a responsabilidade da música do culto. A solução encontrada por muitos regentes, ou diretores de música, é elaborar arranjos das músicas litúrgicas do calendário anual, de forma a ter um meio termo entre coro e povo. Porém, as dificuldades são muitas, pois as tonalidades acessíveis vocalmente à comunidade são graves para o soprano do coro, o que comprime para baixo as linhas de altos, tenores e baixos. Por conseguinte, isso pode tornar a textura espessa demais ou até inaudível, sem considerar que o “coro” das missas, por vezes, não passa de um grupo de meia dúzia de abnegados...


Nas igrejas evangélicas, a peleja dos regentes/ministros de música também é convencer os membros da congregação que um coro é um acréscimo à beleza da música. Em geral, dá-se preferência ao estilo de certas denominações americanas, pelos conjuntos com instrumentos e algumas vozes, ou pelos playbacks, que engessam a música e podem causar erros desastrosos. Por alguma razão, os coros foram relegados, em algumas igrejas, ao culto mais “formal” dos “adultos” ou, o pior, ao dos “anciãos”. Para os outros cultos, que, segundo dizem, devem ser mais animados, empregam-se as práticas da modernidade.


Na casa espírita, a música coral está se tornando progressivamente formada de arranjos de canções e baladas conhecidas, numa tentativa de “purificar” o repertório de influências externas. Isso alinha o segmento a uma visão que animou católicos e evangélicos desde sempre e que tornou a música de cada um excludente em relação a outras “de fora”, por mais belas que sejam. Por exemplo, após a comunhão, na missa, na Santa Ceia, no culto evangélico, o primeiro movimento da Sonata ao Luar, de Beethoven, é inapropriada para elevar os corações a Deus porque sua origem não é religiosa, “separada”? Mas se ela provoca um contato com o Alto, naquela função e naquele momento, não está sendo adequada? Se, na casa espírita, se canta um hino evangélico com uma letra cristã de apelo universal, em que ela se torna inadequada para a celebração?


A produção de arranjos, adaptações, transcrições é uma grande ferramenta dos regentes e diretores de grupos musicais religiosos. Afinal, com a singular diversidade de participantes que temos à nossa disposição – em geral poucos e sem uma formação musical tradicional – é nosso dever, seja profissional seja voluntária nossa atuação, vencer os obstáculos e produzir música de qualidade, ainda que simples, que cause interesse, ainda que desconhecida. O estudo, de nossa parte, oferecerá as ferramentas necessárias para tal mister, mas é preciso que tenhamos a mente aberta para trabalharmos com o que temos à nossa disposição. Assim, podemos colocar um fim àquela tão conhecida expressão: “Deus perdoa se a gente cantar feio, ele não se importa”. Deus não se importa com o que é simples, isso é verdade. Mas tem que ser bem-feito, pois isso é sinal de dedicação e responsabilidade.

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