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Como estamos formando nossos regentes corais?

Rafael Garbuio (EMUS - UFBA)

2 de ago. de 2023

A formação de um regente requer atualização constante

O movimento coral brasileiro caracteriza-se por ser um retrato fiel do nosso país: intenso, amplo, criativo, mas muito pouco organizado. Quando tentamos descrevê-lo, além das generalizações belas e pouco elucidativas, nos deparamos com uma realidade quase irreconhecível. Na verdade, não nos conhecemos como deveríamos, e esse autoconhecimento seria útil para avançarmos em termos técnicos e logísticos. Apesar de sermos um país que canta, poderíamos nos transformar em um povo que canta e sabe cantar, com todas as nuances, conceitos e, às vezes, preconceitos que essa afirmação envolve. No entanto, a realidade a ser enfrentada é criar condições para que nossos coralistas, regentes e também nosso público estejam preparados para um novo patamar técnico. E para isso, precisamos nos conhecer melhor.


Um dos caminhos mais seguros para enfrentar esse desafio é refletir sobre como nossos regentes são formados e qual é o “estado de arte” desse tema. Foi a partir dessa conjuntura que surgiu a motivação para este texto que se pretende apenas provocativo. Sua base foi a rica experiência vivida por mim e alguns colegas colaboradores em um Curso de Especialização em Regência Coral oferecido gratuitamente entre os anos de 2021 e 2022. Após meses em contato direto com um grupo de regentes, que se tornou uma amostra valiosa do que fazemos em nossos coros, surgiu a pergunta: o que sabemos sobre nossos profissionais? Quais são as possibilidades de capacitação e profissionalização disponíveis em nosso país? Enfim, como o Brasil está cuidando de seus regentes de coros?


A primeira constatação a ser feita diz respeito a natural atualização que o processo formativo vem passando nos últimos anos. O ofício de músico no Brasil sempre foi baseado na transmissão pessoal do conhecimento, em que um músico se forma a partir dos ensinamentos de outro músico. No caso dos regentes de coros, essa realidade era ainda mais presente. A maioria dos nossos regentes começava a se formar na profissão dentro de um coral de sua vivência. Por oportunidade e, às vezes, por necessidade, eles passavam a auxiliar o maestro nas rotinas do grupo, iniciando assim sua própria formação. Faz-se necessário destacar a beleza e a importância desse mecanismo natural e valioso de formação para novos profissionais.

 

No entanto, apesar de toda a riqueza de ensinamentos e experiências que essa transmissão natural de conhecimento pode proporcionar aos novos regentes, é indispensável considerar também que a formação de um regente requer atualização constante e cuidados. Afinal, um regente "autodidata" está destinado a ser eternamente... apenas um regente "autodidata". Para exercer com a diligência necessária que esse ofício demanda, é essencial que o conhecimento, as técnicas e a experiência coral estejam em constante aprimoramento. É nesse ponto do processo formativo que percebemos uma atualização relevante em nossa estrutura.


Para organizar essa reflexão, proponho que consideremos o período da segunda metade do século XX até os dias atuais. Esse período foi marcado no Brasil pela estruturação mais ampla do ensino de música nas universidades, o que nos leva a considerar que as últimas gerações de regentes corais brasileiros foram formadas pelos Institutos de Artes e Escolas de Música de nossas universidades e faculdades em todo o país. Também não podemos ignorar o fato de que, nesse mesmo período, houve uma diminuição significativa da estrutura de ensino musical fora do ambiente acadêmico, como nos Conservatórios e Institutos de Música do passado. Mesmo reconhecendo os belos exemplos que ainda resistem e prestam serviços importantes em nossa área, é um fato que houve uma redução dessas opções de formação.


Identificamos, portanto, um grave problema na oferta de vagas e oportunidades de formação. Por mais abrangente e estruturado que seja nosso sistema de ensino superior, ele ainda é insuficiente diante do tamanho de nossa sociedade. Ou seja, nem todos os regentes corais de nosso país encontraram vagas para se profissionalizarem adequadamente.


Nesse ponto da análise, proponho um exercício para aqueles que acompanham o texto. Se os fatos e opiniões apresentados até agora encontraram concordância na maioria, percebemos que chegamos a uma encruzilhada. Iniciei o texto dizendo que o mundo coral brasileiro não se conhece bem e que precisa buscar um aprimoramento técnico. Também considerei que as últimas gerações de regentes de coros foram formadas essencialmente dentro de nossas Universidades, cujas vagas são insuficientes para todos os músicos em formação. Em outras palavras, essa conta não fecha... pelo menos não apenas com esses elementos.


Pois é neste ponto desta quase missiva que retomo a experiência do Curso de Especialização que coordenei no biênio 2021/2022 dentro de uma Universidade Federal. Também reafirmo o que chamei de atualização no processo formativo dos regentes corais de nosso país. Quero acreditar e provocar todos a pensarem que talvez esse seja o caminho para tornar essa conta mais positiva.


O projeto dessa Especialização começou em 2020, fortemente influenciado pela ABRACO e suas reverberações. Não demorou muito para ficar claro que apenas os docentes da universidade proponente seriam insuficientes para abranger o escopo do projeto. Por isso, convidamos outros 25 profissionais espalhados pelas cinco regiões do país, com comprovada relevância na área. Todos os convites foram prontamente aceitos pelos destinatários. É importante ressaltar que ninguém receberia qualquer remuneração por fazer parte do Curso. A gratuidade era mútua... ninguém pagava, ninguém recebia. Isso nos levou à comprovação in loco de que temos no país uma equipe extremamente capacitada de alto nível técnico e artístico, disposta a contribuir, mesmo que voluntariamente, para o desenvolvimento de nosso cenário musical.


Na sequência, durante o processo seletivo, ocorreu outra surpresa muito positiva. Com a autorização da universidade para abrir 50 vagas, elaboramos um processo seletivo específico, regido por um edital cuidadosamente preparado e divulgado com os recursos limitados que tínhamos. Ou seja, "lançamos o edital no site" e aguardamos para ver o que aconteceria. O resultado foi mais de 350 inscrições efetuadas dentro dos trâmites e prazos estabelecidos por nós, o que mais uma vez nos surpreendeu.


Diante disso, meu objetivo é chamar a atenção para os elementos aqui descritos: uma equipe humana de alto nível técnico, uma demanda da área à altura dessa equipe e, o mais importante, a boa vontade de todos os envolvidos nesse cenário.

 

O ponto ao qual gostaria de chegar com essa modesta reflexão é a necessidade de encontrarmos caminhos diferentes para oferecer e aproveitar oportunidades de formação e capacitação para nossos regentes corais. Sem abrir mão da estrutura que já temos, devemos adaptá-la para torná-la mais porosa aos diversos grupos de nossa sociedade, melhorando assim a transmissão de conhecimento e alcançando o avanço técnico necessário nessa área.

 

Concluo afirmando que ainda não somos capazes de responder com solidez à pergunta do título deste texto. No entanto, ao longo da busca por uma organização mínima que nos permita melhorar essa situação, também podemos desenvolver novas formas e, talvez, ainda mais eficientes de aprimoramento. Enquanto não sabemos ao certo como estamos formando nossos regentes, seguimos encontrando novos caminhos para o Universo Coral Brasileiro.

 

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