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Ainda refletindo sobre a formação de regentes: o que podemos dizer sobre o canto coral infantojuvenil?

Ana Lúcia Gaborim-Moreira (UFMS - ABRACO)

1 de set. de 2023

O canto coral pode contribuir para o desenvolvimento bio-psico-social, cognitivo, cultural e artístico-musical de crianças e adolescentes.

Quando o assunto é coro infantil, infantojuvenil e juvenil… para muitas pessoas, a primeira imagem que vem à mente é a de um grupo de crianças berrando um texto indecifrável. Ou, o inverso disso:  a ideia de um grupo de crianças e/ou adolescentes imóveis sobre os tradicionais praticáveis, trajando becas com pastas na mão e tentando cantar um repertório difícil… Essas duas imagens antagônicas podem ser consideradas estereótipos, e até podem ocorrer em algumas situações; porém, não abarcam o leque de possibilidades artístico-musicais de um grupo infantojuvenil[1], tampouco a riqueza de resultados que se obtém com um trabalho bem-sucedido nesse campo.

 

Quando ingressei no curso de Doutorado, percebi alguns olhares tortos ou espantados ao revelar que meu objeto de estudo era a Regência Coral infantojuvenil; percebi um certo preconceito com relação a essa área de educação e de performance musical. Porém, eu queria entender o porquê desse preconceito, e por qual razão aquelas imagens que descrevi no início ainda constituíam uma referência de coro infantojuvenil. E o que constatei, durante a pesquisa, é que a maior parte de nossos regentes brasileiros não têm outras referências, tampouco a oportunidade de uma formação atualizada na área. É por isso que a pesquisa e a divulgação do conhecimento são tão necessárias em nossos dias! É preciso mudar definitivamente a concepção distorcida do coro infantojuvenil como algo que serve apenas para adornar as festas do calendário escolar, servindo de entretenimento para as crianças e os pais… afinal, coro infantojuvenil é educação musical!

 

Por outro lado, há uma ideia preexistente e persistente de que o “coral” é algo antiquado, maçante, cansativo para muitas crianças e adolescentes, que, de modo geral, têm resistência a se dedicar a esse tipo de atividade, seja qual for o contexto. Contudo, em uma sociedade que espera resultados instantâneos e um mínimo de esforço para alcançá-los, é realmente difícil conseguir pessoas engajadas e comprometidas, que se arrisquem a experimentar o que é cantar em um coro. Portanto, é preciso criar estratégias para “vender o nosso produto”. Gostaria de comentar aqui duas situações vividas recentemente: ao anunciarmos vagas para um novo “coral” na universidade, tivemos poucas inscrições, que não eram suficientes para manter o grupo. Mudamos, então, o nome da atividade para “técnica vocal coletiva” e reabrimos as inscrições. Resultado: mais de uma centena de interessados e uma longa fila de espera. Na prática, o mesmo trabalho: levar as pessoas a compreenderem o seu processo de produção vocal e buscarem o melhor modo de cantar, isto é, de forma saudável, eficiente e aceitável esteticamente.

 

Outra situação aconteceu em uma escola de ensino regular: entrei em uma sala de aula do nível Fundamental II e perguntei quem gostaria de participar de um coral. Os adolescentes se entreolharam, mas ninguém se manifestou. Perguntei, então: “quem gostaria de aprender a cantar?” e várias mãos se levantaram. Por fim, indaguei: “Quem já sonhou em participar do The Voice”? Aí consegui arrancar alguns sorrisos da galera, os burburinhos começaram a despontar e senti que tinha ganho alguns coralistas…

 

Fazer sucesso, ser reconhecido publicamente, ter um lugar de destaque na mídia, é algo atraente e perseguido. Seja como for, isso é muito relevante para as crianças e adolescentes de hoje — conforme se vê nos posts, shorts e reels das redes sociais. É a necessidade da Arte! É o eterno desejo do ser humano de ser notado como alguém de valor, de receber elogios por algo que se dedicou a fazer, de sair da rotina, de demonstrar felicidade e de se expressar artisticamente. E não é exatamente isso que o coral proporciona? Volto a dizer: precisamos mudar nossa estratégia de marketing para melhor “vender o nosso produto”.

 

Vamos falar, então, dos benefícios que a prática coral proporciona — porque isso não é muito divulgado. Afinal, canto coral não está no topo das paradas do Spotify, nem vende ingressos que rendem milhões. Por outro lado, tem o “poder” de encantar plateias, de arrepiar os sentidos, de causar uma agradável sensação de bem-estar, de afetar profundamente aqueles que se dedicam a ele, de proporcionar uma experiência estética sublime. E, sobretudo, o canto coral pode contribuir para o desenvolvimento bio-psico-social, cognitivo, cultural e artístico-musical de crianças e adolescentes. Trabalhando há 10 anos com o PCIU! — Projeto Coral Infantojuvenil da UFMS, tenho ouvido muitos depoimentos de pais em relação ao desenvolvimento de seus filhos coralistas, a partir da participação no projeto. No campo cognitivo, é incrível o número de habilidades que as crianças desenvolvem no coro, como, por exemplo, memória, atenção, concentração, linguagem, criatividade e prontidão — algo que elas estão deixando de desenvolver naturalmente, devido ao excesso de horas dedicadas às telas dos computadores, tablets e telefones celulares.

 

As habilidades cognitivas se somam ao desenvolvimento cultural e artístico-musical, especialmente se considerarmos que as crianças cantam repertórios de diferentes estilos e origens — além de conhecerem diferentes espaços dentro da própria cidade, onde realizam apresentações. Em termos de habilidades psicomotoras, a expressão corporal pode aperfeiçoar a lateralidade, a coordenação motora, a noção temporal e espacial, além dos cuidados com o corpo e a voz. No campo do desenvolvimento psicossocial — que é o mais perceptível — posso afirmar que muitas crianças com problemas de timidez conseguiram perder o medo do público e passaram a se comunicar melhor após ingressarem no coro. Recebo vídeos de mães emocionadas, mostrando seus filhos se apresentando como cantores solistas na escola ou na igreja; elas atribuem esse feito à participação de seus filhos no coro, e, por isso, eu posso arriscar dizer que o coro infantojuvenil pode mudar o futuro de muitas crianças. Já em termos de socialização, que é propiciada pelo trabalho em equipe que se desenvolve no coro, naturalmente as crianças compreendem sobre respeito, igualdade, equidade, paciência, tolerância e cada um é devidamente reconhecido no grupo — independentemente de notas de provas ou de um comportamento considerado indisciplinado. No coro, você não é “mais um”, mas você é alguém que faz a diferença.

 

Voltando a falar sobre a formação do regente — que é tão necessária, para que possamos ter uma prática coral infantojuvenil mais coerente — observo que nos diversos cursos, paineis, festivais e oficinas em que tenho atuado pelo Brasil, os regentes estão sempre buscando soluções para problemas que fazem parte da rotina de um coro: repertório adequado, orientações sobre o trabalho de preparação vocal  (sobretudo na fase de muda vocal), classificações e divisões do coro em vozes, instruções para o planejamento do ensaio, atividades lúdicas para tornar o ensaio mais interessante, dinâmicas para trabalhar a expressão corporal e cênica, materiais para o desenvolvimento da leitura/solfejo, estratégias para motivar as crianças e os adolescentes, entre outras “dicas”. A boa notícia é que muitos desses temas já constituem pesquisas acadêmicas, que cresceram em número e em diversidade de assuntos nos últimos anos. Conforme levantamentos realizados recentemente (Gaborim-Moreira, 2020; Barbosa, 2022), entre os anos de 2016 e 2021, pelo menos 200 artigos com o tema coro infantojuvenil e afins foram publicados, e desenvolvidas cerca de 40 pesquisas de Mestrado e Doutorado no Brasil. Livros ou capítulos de livros voltados exclusivamente ao coro infantojuvenil também ganharam espaços nesses últimos anos — o que denota o crescimento na área.

 

Além de todo esse material acadêmico — a maior parte dele, disponível gratuitamente para download na Internet — temos uma série de lives produzidas durante a pandemia que abordam exatamente essas questões. Nesse sentido, cabe destacar o CIMUCI (Congresso Internacional de Música Coral Infantojuvenil), que, desde 2020, promove uma série de palestras, mesas redondas, oficinas (presenciais e híbridas) sobre diversos temas relacionados ao coro infantojuvenil, com a participação de regentes reconhecidos nacional e internacionalmente. O Congresso teve o apoio da FUNARTE, que também disponibiliza um vasto material didático para os regentes, e todas as atividades, virtuais ou híbridas, estão à disposição na plataforma YouTube. É importante salientar, ainda, que no encontro nacional da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), em 2020, houve um grupo de trabalho com a temática Canto Coral, no qual foram apresentados diversos trabalhos sobre a sofrida prática coral virtual ou on-line, incluindo os “coronavídeos” ou “coros mosaico” infantojuvenis.

 

A pandemia nos revelou que um coro se faz com ferramentas digitais, quando não é possível um encontro no plano físico. E, dessa forma, nos provou que o canto coral pode sempre se fazer presente, apesar das circunstâncias; só depende do regente a constante criação e inovação; o desbravar, o ousar, o buscar incessantemente a qualidade sonora que se almeja para a performance do coro. Mas isso, o regente não consegue sozinho; definitivamente, o canto coral se faz pela sinergia, pela união das forças pessoais. Por isso, estamos aqui, construindo a Nova Associação Brasileira de Regentes de Coros (ABRACO), buscando apoio para nossas necessidades e demandas, bem como argumentando, sem cessar, sobre a importância do canto coral para o desenvolvimento humano e, sobretudo, alertando sobre a necessidade de coralizar — urgentemente — as crianças e adolescentes do nosso Brasil.



[1] A partir deste ponto, para facilitar a leitura, mencionaremos apenas o termo “coro infantojuvenil”, com o propósito de abarcar todos os coros de crianças e adolescentes (englobando o público infantil e o juvenil).

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